sexta-feira, 29 de março de 2013

A revolta das obreiras

A abelhinha princesa sai em seu voo inaugural, pela primeira vez livre da escuridão do casulo e da vigilância das obreiras, primeira vez e provavelmente a única de sua vida em total liberdade, sem estar sujeita aos zelos e proteções maternais. O prazer da aventura a conduz às alturas, caminhos desconhecidos na amplidão do céu, desatenta aos perigos que a cerca, a chuva repentina e os bicos gulosos dos predadores. As obreiras aguardam em casa, aflitas, o retorno feliz da virgem.

Em sua perseguição voam os machos, os zangões, centenas ou milhares a depender da colmeia, pois quanto mais próspera a colmeia menos macho possui, quanto mais pobre maior o seu número, a ensinar que a prosperidade racionaliza a proliferação de filhos, nunca o contrário.

Um único macho alcança e se agarra à princesa, fecundando-a, mas perde o seu abdômen na realização do ato sexual, que se gruda ao corpo da abelhinha. Este macho, feliz ou infeliz, morre e o seu corpo desaba ao solo, enquanto os demais, já cansados da viagem inútil, retornam às suas casas.

A legião de machos não trabalha, empanturra-se do mel da colmeia e dorme. São maiores em tamanho do que as virtuosas obreiras, eles consomem mais, sujam mais, bagunçam o ambiente, importunam as trabalhadoras, estas tão zelosas na limpeza da casa, na produção e armazenagem do alimento. Os machos são agora um transtorno, uma turma de mandriões, vagabundos, suas presenças na colmeia transforma-se em problema vital a ser resolvido.

E assim, em determinado momento, momento imprevisível, rebelam-se as abelhinhas obreiras contra a inutilidade daqueles machos imprestáveis. Ocorre a rebelião! As trabalhadoras atacam os machos com seus ferrões e veneno, furiosas contra aqueles vadios grandões, comilões e sujos. Os machos são maiores, mas não dispõem das armas das obreiras, não possuem ferrões nem veneno. São cercados e aniquilados!

Terminado o extermínio, as abelhinhas intrépidas removem os corpos mutilados dos machos da cidade da colmeia. Asseadas, limpam tudo, reorganizam a casa, finalmente acabou a exploração dos inúteis, estão livres daqueles que só consomem e nada produzem.

E fica a pergunta: quem é mais inteligente, a abelha ou o homem?

domingo, 24 de março de 2013

O ISS das Construtoras

(em conversa de botequim)

- Veja quem está ali!! Ali no balcão, sentado no tamborete e bebendo desbragadamente!
- É o Nestor da Prefeitura! Está a chorar e a despentear os cabelos!
- Percebe-se que o nosso amigo está acabrunhado! Será que a mulher o largou?
- Nada disso!! Aquele desespero e esse jeito de pré-suicida são por causa da Prefeitura.
- Sabes o motivo de tão nefasto comportamento?
- Sei o que me disseram: a gratificação da produtividade minguou e agora só recebe o salário.
- Mas o salário de Fiscal é menor do que ganha uma empregada doméstica!!
- E nem se alivia com a bolsa família!!
- Será que o Nestor não mais trabalha com afinco?
- Nada disso!! Continua a trabalhar arduamente, mas a receita não entra.
- Inadimplência total?
- Não desta maneira. Eu chamaria de inadimplência legal! Ele fiscaliza o ISS das Construtoras.
- E temos várias obras na cidade!!
- Decerto! Eu soube que ele gastou um mês para fiscalizar a Construtora que nada arrecadou.
- Pois que lance, pois que multe!!
- Não adianta! A Construtora ganhou no recurso!
- E alegou o quê?
- Que tudo foi material colocado na obra.
- E material deduz do ISS?
- A Justiça mandou.
- Bom, pelo menos pagou ICMS...
- Que nada! A Construtora é apenas consumidora final dos materiais.
- E não pagou o ICMS?
- Nem ISS, nem ICMS.
- Mas não houve mão de obra na construção?
- Toda assalariada! E assalariado não paga ISS...
- Mas o ISS é da empresa e não dos empregados!!
- Explique isso ao Conselho de Contribuintes! Como o ISS grava somente a mão de obra, o Conselho aceitou a interpretação da empresa de que o imposto não pode incidir sobre o custo do Pessoal empregado.
- Mas isso é uma loucura!!
- Loucura é o meu copo estar vazio! Chame o garçom!
- Espere! Quero entender! Então não sobrou nada para o ISS?
- Bem, até que sobrou um pouco...
- E este pouco foi quitado?
- Não! A Construtora disse que esse pouco foi feito por subempreitada.
- E daí?
- O valor da subempreitada é deduzido...
- Quem disse? A lei vetou a dedução das subempreitadas!
- A Justiça disse.
- A Justiça fez renascer um veto na lei?
- Pois é. O Nestor trabalhou como um danado, não houve receita, não houve gratificação, coitado...
- Garçom!!! Mais duas cachaças, pelo amor de Deus!!!

sábado, 16 de março de 2013

As Taxas Municipais de Poder de Polícia

São tantos Municípios que as leis municipais se entrelaçam, se confundem, se misturam, como se fossem raízes no subsolo da floresta amazônica. A instituição das taxas é um ótimo exemplo de equívocos e baralhamentos, e muitas autoridades a tratam como se fossem tributos da categoria de imposto. Só que não é; taxa é taxa, imposto é imposto. Tributos de particularidades diferentes. E uma delas é que a taxa é vinculada a uma atividade específica, e sua receita serve justamente para custeá-la.

Taxa de poder de polícia é instituída em função do exercício regular do poder de polícia sobre o contribuinte ou sobre a atividade que ele exerce. Exercício regular no sentido de existir um órgão competente para desempenhar a função, possuindo um quadro de pessoal habilitado e apto à sua prática. E o contribuinte da taxa tem que ser, obrigatoriamente, alvo do exercício desse poder de polícia. Não importa se foi fiscalizado ou não, o que importa é o fato de estar enquadrado no rol visado pela fiscalização. Por isso, a lei do Município deve esclarecer quem será o sujeito passivo de cada uma de suas taxas.

Há uma série de taxas municipais de poder de polícia, dentre elas:
Taxa de análise para liberação da licença de construção;
Taxa de análise para liberação do certificado de habitabilidade da construção (“habite-se”);
Taxa de análise e vistoria para liberação do Alvará de Funcionamento de Estabelecimento;
Taxa de Fiscalização Sanitária (ou de Vigilância Sanitária);
Taxa de Fiscalização do Meio Ambiente;
Taxa de Fiscalização de Estabelecimentos.

A tratar somente das taxas acima, pois existem outras, o contribuinte da taxa para liberação da licença de construção é aquela pessoa que pretende executar uma construção particular. A taxa é, assim, somente direcionada aos que pretendem construir. Isso parece óbvio, mas, nem tanto.

O tumulto começa nas taxas de fiscalização de estabelecimentos. Um estabelecimento pode sofrer fiscalização de acordo com a sua atividade. Por exemplo, um açougue sofre fiscalização sanitária, e, deste modo, paga a taxa de Vigilância Sanitária. Todavia, em muitos Municípios o infeliz do dono do açougue paga também as taxas de fiscalização de estabelecimento e até de meio ambiente. Um escritório de advocacia paga taxa de fiscalização de estabelecimento, o que está certo, mas, muitas vezes, o Município quer cobrar também a taxa de vigilância sanitária e de meio ambiente do mesmo escritório.

Ocorre que o açougue sofre fiscalização sanitária, mas não sofre fiscalização de posturas ou de meio ambiente. O escritório de advocacia não é sujeito passivo da vigilância sanitária e nem do meio ambiente, mas querem cobrar essas taxas do escritório que já paga a taxa de posturas municipais.

Outra confusão existente é a questão da renovação do alvará. Renova-se o alvará na proporção do risco da atividade, ou melhor, a depender do risco a lei municipal pode exigir a renovação semestral, anual, bianual e assim por diante. Um estabelecimento de alto risco, no sentido de segurança e higiene, pode ter aprovado um alvará com prazo de vigência determinado, por exemplo, de seis meses apenas, exigindo, assim, uma nova vistoria quando de sua renovação. Ao mesmo tempo, um estabelecimento de risco mínimo, como, por exemplo, um escritório de contabilista, pode receber um alvará definitivo, sem necessidade de renová-lo. Acontece, porém, que as autoridades municipais confundem a renovação do alvará com a cobrança da taxa de fiscalização, como se uma coisa só fizesse sentido com a outra. Aí, então, exigem renovação anual do alvará de todos os estabelecimentos, e nem se importam em efetuar uma nova vistoria no local. O que eles querem é somente cobrar a taxa, que nada tem a ver com isso. Taxa de fiscalização é sempre anual e lançada de ofício, não precisando da desculpa de renovar o alvará.

O que se cobra na renovação do alvará é a taxa de vistoria ou de análise para liberação do novo alvará, levando em conta a importância da nova vistoria no local, pois um estabelecimento pode sofrer alterações ou não manter o cumprimento das normas de segurança e de higiene. Vem daí o pequeno prazo de vigência do alvará em tais casos.

Em suma, a exigência de renovar o alvará é um instrumento que deve ser usado para o exercício de nova fiscalização no estabelecimento. E, por isso, quanto maior o risco, menor o prazo do alvará liberado. E não se vai perder tempo com os estabelecimentos de risco mínimo, como é o caso de um escritório de profissional liberal, ou de uma lojinha de presentes.

O assunto merece continuação em novos artigos.

quinta-feira, 7 de março de 2013

A Vítima

Cantilícia Sapucaia saiu de casa rumo ao trabalho às seis horas em ponto, como habitualmente fazia nos dias úteis, depois de organizar a merenda dos dois filhos, acordá-los e fiscalizar suas abluções matinais, passar a roupa do marido e expulsá-lo da cama para arrumá-la, enquanto enfiava um pão na boca e carregava a caneca de café. Vestia a roupa de sempre, portava a bolsa de sempre, o inexplicável entusiasmo e energia de sempre. 

Greve de ônibus era a novidade daquele dia, foi seguindo a pé até a estação do trem, atraso que o patrão devia desconsiderar se a culpa não lhe cabia, atraso não constava de sua ficha, tinha certeza, além do fato de que o patrão sempre perdoava os frequentes atrasos daquela sirigaita, a tal de Dorinha, a circular na repartição quase nua, a saia curta de modo a mostrar a calcinha e fomentar o apetite dos homens, tenho certeza que o patrão já passou nos cobres a mulherzinha, mas dizem que ele não é chegado, sei lá, não me meto nessas fofocas.

Estação entupida de gente, na base do empurra-empurra, não há ordem, não há fila, todo mundo se atropelando, tem gente entrando por um buraco no muro, vou nessa também, tem que pular o muro, é muro baixo, mas a saia atrapalha, tenho que comprar uma calça comprida, o marido reclama, diz que tenho uma bunda grande, tudo que é homem vai ficar olhando, ora, que se dane que olhem se vou dar confiança a esses idiotas, sou mulher de respeito, mãe de dois filhos, se eu estivesse de calça comprida não aconteceria isso, a saia ficou presa, pronto! Rasgou a saia, a minha favorita! Vou chegar esfarrapada na repartição, você está rindo de quê, seu moleque!

Cantilícia Sapucaia conseguiu entrar no trem, com a roupa rasgada, pernas lanhadas e mãos sujas de segurar no muro e ao subir na plataforma, porém, sem desgrudar da bolsa a tiracolo. Trem apinhado, calor insuportável, o cheiro do suor no ar rarefeito, Cantilícia seguia firme, segurando-se no ferro do vagão, ou melhor, grudada no ferro que já lhe marcava a testa.

Final de viagem seguiu a pé, as calçadas esburacadas e poças de lama da chuva da noite anterior, correu para atravessar a avenida, pois os carros ao longe a avistaram e logo vinham em disparada para alcançá-la antes que se refugiasse na calçada. Uma pequena poça estava no seu caminho, parecia raso no asfalto, por certo um pequeno declive na pavimentação defeituosa, mas, na verdade, a água turva escondia um buraco tanto profundo, onde o pé de Cantilícia foi alojar-se e ser a causa da queda pesada do seu corpo, oportunidade logo aproveitada pelos carros a passarem em carreata por cima dela.

Após alguns segundos de desmaio, Cantilícia recupera os sentidos e geme de dor, o sangue se alastrando no asfalto molhado, as pessoas fazendo rodinha, os carros buzinando exigindo passagem, um jovem aproveita a confusão e foge com a bolsa, alguém telefona à polícia, dá ocupado, alguém telefona ao bombeiro, ninguém atende, o alguém desiste, já cumpriu o papel de bom samaritano, é melhor ir embora, pois tem muita coisa a fazer, um carro da polícia se aproxima, alguém viu o carro que atropelou? Ninguém viu nada, vou fazer a ocorrência, não sei se a perícia vem, qual é o nome dela? Ninguém sabe, não tem identificação, acho que um garoto fugiu com a bolsa, você tem certeza? Não senhor, não quero me meter em confusão. Acho que ela morreu, chama no rádio o bombeiro, vamos dispersar, gente, o trânsito está parado!

No dia seguinte, o jornal publicou: “Moradora de rua morre atropelada”

domingo, 3 de março de 2013

O Empresário e o Alvará

Longarino Cata-Bagulho foi eleito prefeito com o apoio logístico do empresário Mergulhão, tido e havido como o Rei da Noite por suas monumentais produções artísticas nas praças da cidade, financiadas pelo erário público e recebimento de recursos provenientes da propaganda do comércio local. Mergulhão é também conhecido por circular nas ruas citadinas em enorme camionete dotada de possantes aparelhos de som, a tocar em volume estridente tudo que ele entende por música, acompanhada de corais sonoros ladrados por cães, zunidos de jumentos, mugidos das vacas e gritaria reclamatória dos humanos, a criar, assim, espetacular cacofonia noturna, o que lhe proporciona radiante felicidade, contrapondo-se ao desespero geral.

O objetivo de Mergulhão, ao investir na campanha do oposicionista Longarino Cata-Bagulho, é de ampliar os seus negócios empresariais e inaugurar a maior casa de show da cidade, sendo o superlativo de mero efeito publicitário, se a cidade não possui qualquer estabelecimento similar, localizada justamente ao lado da Igreja Salvados de Pecados, cujo titular e pastor era o prefeito anterior que recusava sistematicamente a liberar o alvará, salvo-conduto necessário ao exercício da atividade, em vista da concorrência de gente e de barulho, de ressonância imprevisível e perspectivas alarmantes.

A vitória de Longarino abriu as comportas das licenciosidades, aqui entendidas como um fluxo mais fluente de produção de licenças municipais, uma delas imediatamente requerida pelo empresário Mergulhão com vistas a abrir a porta da casa de show, porta propositalmente no singular, pois uma só seria suficiente a impedir os fregueses de práticas insultuosas de fugirem sem pagar as contas, reduzindo os custos de zeladoria, vigilância e de despesas na confecção de porteiras e dos letreiros correspondentes.

O novel prefeito, no desejo de logo quitar os compromissos assumidos em período pré-eleitoral, ordenou ao único fiscal da municipalidade, o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, se todos que o conheciam receavam dizer o seu verdadeiro nome e claudicar na pronúncia, nome, aliás, escolhido por seu pai, que Deus o tenha, o único admirador conhecido do soberano almoáda que derrotou as tropas de Afonso VIII de Castela, que se entenda neste exemplo as idiossincrasias das pessoas, cada uma com os seus mistérios e perplexidades. Acontece que Ipissilone era um verdadeiro nestor, experiente nas coisas públicas e diligente no exercício do fazer, recusando-se a assinar o alvará enquanto não cumpridas as exigências posturais de segurança, já indicadas no procedimento administrativo transitado e guardado em suas gavetas.

A recusa indignou o prefeito Longarino, ora, que desfeita é essa, se sou eu o mandatário da cidade e todos me devem obediência, e vem um rafado desse, um reles servil, a negar praticidade às minhas ordens, já vejo que muita coisa nesta prefeitura terá de mudar. E no primeiro ato de reforma administrativa mandou o velho Ipissilone para a beira da rodovia federal e contar os veículos passantes, o número de carros de passeio, camionetes, caminhões e ônibus, tudo anotado em papel oficial durante uma semana, a fim de resolver de uma vez por todas o resultado de antiga aposta feita na mesa do bar, aposta sem solução se ninguém sabia a resposta certa, quantos veículos circulam na rodovia. E na ausência de Ipissilone o próprio prefeito mandou pegar o processo e assinou o alvará.

Mergulhão caprichou em pompa e circunstância a inauguração, trazendo a banda Cangote Fino lá da capital, iluminando feericamente a frente da casa e escurecendo o interior com luzes negras e projetores a laser, uma escuridão total a permitir que homens feios e mulheres sem graça tivessem, também, o direito de conseguir um par na dança, prova maior do espírito democrático do empresário, a contar ainda com um barulho infernal que impedisse qualquer tentativa de iniciar um diálogo, um bate-papo informal, a evitar, assim, a vergonha dos idiotas presentes, e são muitos os idiotas presentes nessas baladas, que não sabem conversar ou sequer construir uma frase, tudo assim a enaltecer o espírito público de Mergulhão na defesa do princípio da isonomia.

E foi nessa algazarra que explodiu uma lâmpada e as chamas se alastraram, o fogo pegando nas cortinas e no telhado de madeira, a corrida desesperada da freguesia, a zeladoria exigindo a apresentação dos papeizinhos chamados de comanda, até que um freguês mais enfezado enfiou duas balas na cara do coitado do segurança, dando-se de imediato por liberada a saída de todos. Veio o Bombeiro fazer o rescaldo, a polícia para indiciar alguém, sobrou para o senhor Ya’qub, mais conhecido por Ipissilone, que, em vez de estar fiscalizando a boate, foi visto lá na beira da rodovia, em plena madrugada, cochilando numa rede, com várias folhas de papel oficial empilhadas no chão, e com todo jeito de estar contando as estrelas do céu, provavelmente enlouqueceu o pobre fiscal.