terça-feira, 29 de setembro de 2015

Sei que vai doer


Sei que vai doer, mas vamos aceitar as verdades e acabar com as nossas ilusões ingênuas: o Brasil tem uma história de tristeza e permanente angústia. Ao ser descoberto, em 1500, não era aquele paraíso tropical que costumam pintar. Era um lugar maldito, infestado de animais perigosos e peçonhentos. Um lugar de enfrentamentos constantes, com o massacre dos nativos que se rebelavam pela invasão dos brancos. Milhares de índios foram dizimados, nas batalhas, nas doenças trazidas pelos invasores e na subjugação como escravos.

Século seguinte foi o início do mais odioso extermínio de seres humanos: a perseguição aos negros na África e o transporte para o Brasil como escravos. Para plantar cana e produzir açúcar, os negros trazidos à força eram obrigados a um regime infame e brutal, tratados da forma mais violenta que se pode (ou nem se pode) imaginar. Grande parte não resistia ao primeiro ano de trabalho, a exigir reposição de estoque. O comércio de escravos era um dos mais rendosos na época. Muitos escravos fugiam e formavam assentamentos (mocambos) e fortificados quilombos, centros de guerra e de resistência. Quilombo dos Palmares (das palmeiras) foi um exemplo de centenas de outros quilombos. Palmares se manteve por quase cem anos e caiu por traição.

Século seguinte, somado ao massacre dos índios e negros que não acabava, surgiu o ouro nas minas gerais. Foi a maior corrida ao ouro em todo o mundo, a rivalizar com a busca do ouro da Califórnia muito tempo depois. Dezenas de milhares de pessoas aventuraram-se a ultrapassar a quase inexpugnável serra da Mantiqueira, a partir de Piratininga de São Paulo e do Rio de Janeiro. Boa parte não chegava ao destino. Outras levas de aventureiros deixavam a Bahia de Todos os Santos e seguiam o curso do Rio São Francisco para o interior, a procura das minas de ouro. No caminho, enfrentavam quadrilhas de bandoleiros e tocaias de índios. E ao lá chegarem, descobriam que não havia alimento. A comida era mais disputada do que o próprio ouro.

O governo português era cruel e tirânico. Sua única intenção era a de sugar o máximo o que a colônia podia produzir. Foi assim no início, com o pau Brasil, foi depois com o açúcar, e depois com o ouro e diamantes. Exorbitavam na cobrança de tributos, e quem não pagava era preso e tinha seus bens apreendidos. Na luta pela sobrevivência, muitos apelavam ao descaminho do contrabando, mas, quando apanhados, eram sumariamente decapitados.

Rebeliões surgiam a cada momento, mas a história do Brasil não as relata, e os nossos historiadores não gostam de contá-las. Fazem alarde somente da insurreição mineira e da figura romântica de Tiradentes, com aquela longa barba que não usava. A independência do Brasil foi um acordo fechado entre os próprios portugueses, os de lá com os de cá. O país, agora independente, teve de pagar uma indenização milionária a Portugal. Uma vergonha: a nossa independência não foi conquistada com bravura, mas com dinheiro.

Veio depois a República, um golpe de Estado praticado contra o reinado brasileiro, tendo por líder um marechal que nem queria a República. Ela veio por acaso. E a história não acaba por aí.

E vamos vivendo assim. Sem educação, sem prevenção à saúde, a violência comendo solta, destruição do meio ambiente, dinheiro público saqueado, desajustes fiscais e sociais, desemprego, pedaladas e malandragens. Talvez fosse melhor começar tudo de novo. Todo mundo ir embora e devolver aos índios a terra que lhes pertence. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O Telefonema

- Alô! É o Governador?
- Sim, é ele, quem está falando?
- Aqui é a Presidenta!
- Excelência! Quanta honra! Como vai a senhora?
- Vai-se indo, vai-se indo...
- A que devo o seu telefonema?
- Eu queria dizer, Governador, que estou com agenda livre no próximo mês e gostaria de fazer uma visita ao seu Estado.
- Mês que vem? Puxa, Excelência, mês que vem é época da chuva, chove muito aqui, a senhora sabe...
- Não tem importância! A gente usa capa e guarda-chuva. O senhor não tem alguma inauguração a fazer no mês que vem?
- Não... Está tudo meio parado...
- Um minha casa minha vida, por exemplo...
- Tinha um, mas as casas desabaram, com as chuvas, a senhora sabe...
- Nem um lançamento novo? Plantar uma árvore, instalar um outdoor?
- Tem um que já instalamos o outdoor, mas o povo arrancou...
- Não tem outra inauguração qualquer? Um hospital, uma escola...
- Não tem não, está tudo meio parado...
- Outra coisa qualquer, um açude, caçambas de água, carro pipa, ambulância...
- Tem um prefeito que me pediu verba para comprar um jegue novo para carregar água...
- O que aconteceu com o jegue velho?
- Morreu de fome! O capim está caro...
- Governador! Eu preciso de um evento aí no seu Estado! Pense alguma coisa!
- Estou pensando, Presidenta... Ah, me lembro! Vai ter um forró na cidade de Baixinho. É muito badalado!
- Forró? Qual é o nome do evento?
- É Rock in Small Person. Bem sofisticado, não é mesmo?
- Não sei se vai ajudar... Vai ter claque?
- Claque?
- É, este pessoal que bate palmas e grita quando a gente mandar.
- Ah, Presidenta... Aplausos hoje em dia estão custando os olhos da cara. Vamos precisar de verba pra pagar essa gente...
- O senhor não tem?
- Tenho nada. A senhora não tem?
- Tenho nada, o Levy não deixa. Eu ia até pedir um favor ao senhor...
- Pode pedir, excelência.
- O senhor tem um dinheirinho pra ajudar no combustível do avião?

Conversas amenas

- E aquela piada do brasileiro que comprou a Estátua da Liberdade, você conhece?
 Foi um argentino que vendeu.
- kkkkkkk

domingo, 13 de setembro de 2015

A descriminalização da maconha

 Diante da provável decisão do Supremo de desconsiderar como crime o consumo da maconha, o traficante Percival Osvaldino Cristão, mais conhecido como POC, resolveu formalizar o seu comércio e abrir estabelecimento para venda da canábis.

Para tanto, constituiu uma empresa e alugou uma loja em Copacabana denominada “Erva Danada”. Na inauguração, diversos fornecedores e consumidores compareceram e foram servidos com charutinhos de maconha, muita cerveja e lesco-lesco. A fumaça e o cheiro da erva dominavam o recinto, a provocar a presença da Guarda Municipal, que, incontinenti, lavrou o auto de infração contra POC, por permitir aos visitantes fumar em recinto fechado.

Logo depois, chegou a turma de Fiscais de Posturas com outra multa em decorrência da falta de alvará de funcionamento do Estabelecimento, sujeito a interdição caso não fosse regularizado em trinta dias. E mais uma multa por não ter o laudo do Corpo de Bombeiros.

Ao sair a fiscalização de Posturas, adentrou ao recinto a Vigilância Sanitária, a requerer vista ao alvará sanitário, documento desconhecido pelo comerciante, a sofrer, por sua ignorância, mais uma penalidade fiscal.

Ainda abalado com a coleção de multas e advertências, o novo empresário recebe a visita de fiscais do ICMS, a exigir a apresentação das notas fiscais da mercadoria exposta nas prateleiras. O aturdido POC tenta explicar aos servidores que os produtores rurais de canábis não estavam acostumados, por longa tradição, de emitir nota fiscal rural, justificativa não convincente ao jugo fiscal, sendo, então, lavrado o auto de infração correspondente.

Fazendo fila para ingressar no estabelecimento, eis que agora surgem os Fiscais do Meio Ambiente, a requisitar não só o alvará do meio ambiente, mas, também, a exigir comprovação de que as plantações canabalísticas estão sendo exploradas de forma racional e autossustentável. Em vista da ausência de documentação comprovável, a loja “Erva Danada” foi autuada e intimada a apresentar os documentos em trinta dias, sujeita a interdição.  

Sem dar ao infortunado comerciante um momento de descanso, invade o estabelecimento a fiscalização do ISS, sob o argumento de que a elaboração de cigarros de maconha nada mais é do que industrialização por encomenda, a ser tributada pelo Imposto sobre Serviços. Neste momento, um carteiro entrega ao comerciante uma notificação da Receita Federal, pela qual lhe é dado ciência de que a fabricação de cigarros maconhados sofre incidência do IPI, com uma alíquota de 60% ad valorem, sem esquecer-se da tributação do PIS/PASEP e COFINS.

A piorar, surge a Polícia Federal, a exigir a identificação dos produtores da erva. Neste meio tempo, fornecedores e consumidores, assustados com o aparato fiscal-policial reinante, resolvem, discretamente, abandonar o recinto, deixando POC sozinho para enfrentar aquela pressão fiscalizatória generalizada.

E foi assim que mais um empreendimento empresarial fracassou. O traficante POC retornou aos velhos hábitos, e, sorridente, de metralhadora na mão, voltou a vigiar, do alto da favela, as incursões dos concorrentes e da polícia.



quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Fernandinho

Na foto, Fernandinho à esquerda, de camisa azul

Fernandinho foi embora e o mundo ficou assim, meio vazio, vamos dizer, mais chato. Ele era o tipo de pessoa que fazia falta, sua ausência era sempre notada: “Cadê o Fernandinho?”. Quando chegava, o cenário se iluminava, uma espécie de condutor de energia, o ambiente se energizava. Fernandinho era energético, trazia uma boa luz, o diodo emissor de luz. Fernandinho era a LED dos nossos encontros. Sem ele, tudo fica mais apagado, sem muito sentido.

E ele era assim naturalmente, sem prepotência ou banca de artista. O seu sorriso contagiava, pegava a todos, como se fosse um vírus da felicidade. Os aborrecimentos se afastavam, as tristezas fugiam e iam pedir asilo em outros rincões.

E lá vinha ele mancando sobre a prótese de sua perna imaginária. Apesar da deficiência, andava rápido, com os braços estendidos e sempre trazendo uma novidade divertida. Olhava pra mim e pedia sorridente: “Conta a piada do espanador!”. Ele adorava a piada do espanador.

Fernandinho foi bancário, radialista e propagandista. E tudo fez com a sua costumeira energia esfuziante. Radicou-se em Belo Horizonte, mas retornou à Petrópolis, sua terra natal. Sem nada dizer, talvez previsse o fim precoce. Morreu na terra em que nasceu.

Fui visitá-lo no fim da vida. Franzino, caidinho, olhou-me e esboçou aquele sorriso cintilante que era só dele. Aproximei-me o máximo para ouvir os seus sussurros. Com muito esforço, ele disse: “Conta a piada do espanador”. Respondi: “A piada do espanador exige muita movimentação. Vou contar a piada da lógica”. Ele concordou com os olhos. Contei a piada da lógica, ele abriu um sorriso e depois dormiu.

Foi a última vez que vi Fernandinho. Para quem acredita, ele deve estar energizando o Paraíso e tornando mais alegre as reuniões dos anjos e querubins. São Pedro deve estar perguntando: “Cadê Fernandinho?”.
Estou com inveja de São Pedro. 

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O Orçamento



O marido assistia a um jogo na televisão e a esposa entrou na sala com uma caixa de documentos e calculadora em punho.

- Pode desligar a televisão! Vamos fazer o orçamento do próximo ano!
- Poxa! Não pode ser amanhã?
- Não! Não pode! Você vive adiando e vai ser agora!

O marido, insatisfeito, mas conformado, desligou a televisão. A esposa começou a mexer na papelada.

- O seu salário vai aumentar no ano que vem?
- Bem, têm uns boatos rolando...
- Se não tem nada certo, boato não cola. Vamos registrar como Receita Corrente o seu salário líquido atual. Você tem previsão de mais alguma receita?
- Se pintar aquele biscate que o Osório prometeu...
- Conjectura não cola! Não boto mais nada aqui. Se sair o biscate, colocamos em receitas extraordinárias e vamos estudar o que fazer com ela. Então, a receita corrente anual vai ser só essa aqui, de R$78.000,00.
- Líquido ou bruto?
- Líquido, é claro! Vamos às despesas correntes: aumentei em 20% as despesas de mercado, por causa da inflação. Aumentei em 10% a conta de luz, água, gás e telefone. O plano de saúde já me falou que a despesa vai ser de R$250,00 por mês. Aumentei em 15% as despesas de transporte.
- Espera! Você esqueceu a poupança! Quanto tem lá?
- Têm R$6.000,00, mas a poupança é para despesas emergenciais, você sabe.
- Dinheiro carimbado!
- Isso mesmo! Dinheiro carimbado! Ninguém toca!
- E qual foi o resultado?
- Somando as despesas correntes, temos um superávit de R$18.000,00. Vamos, agora, examinar as despesas de capital. Estou precisando muito de um novo fogão, você sabe disso.
- Quanto custa um fogão novo?
- Uns R$2.500,00. Sobraram R$15.500,00, mas quero deixar uma provisão de contingência no valor de R$5.000,00. Temos, então, um saldo de R$10.500,00.
- Pelo visto, trocar de carro já era...
- Já era! E aquele passeio ao Nordeste também já era...
- Poxa! Nós tínhamos combinado!
- Não vai dar! Cortei também a compra da máquina de lavar roupa. Fico com a velha.
- E a nova instalação elétrica desta casa? A fiação está toda podre...
- Vamos fazer! O eletricista mandou orçamento e vai ficar em R$3.000,00 o serviço e o material.
- Tudo bem! Então sobram R$7.500,00.
- Você pode comprar aquele celular novo de R$2.000,00.
- Legal! E ainda vão sobrar R$5.500,00!
- Não sobra nada! Esse dinheiro vai pra poupança! Vamos fazer um esforço e depositar R$500,00 todos os meses. Quando completar os R$5.500 a gente para.
- E aí? O orçamento bateu?
- Claro que sim! Orçamento tem que bater!
- Mas o governo mandou pro Congresso um orçamento que não bate.
- Acontece que aqui em casa nós somos governo e congresso. Fazemos e aprovamos!
- Parece uma ditadura matriarcal... Não seria melhor você ser o governo e eu o congresso?
- Está louco? Você iria encher o orçamento de remendos e tudo de despesas!
- Está certo! Onde assino?