domingo, 10 de abril de 2016

O pé esquerdo

Da série: Contos Fantásticos

Um supermercado desabou em pleno dia esmagando centenas de pessoas. Veio a polícia, o corpo de bombeiros, ambulâncias e jornalistas. Cercaram o local da tragédia com cordões de isolamento. E veio o Prefeito, logo cercado pelos jornalistas na tentativa de obter alguma informação que explicasse o desabamento.

Somente bombeiros tiveram permissão de entrar nos escombros do prédio. As lajes sobrepostas deixavam em certos lugares um pequeno espaço pelo qual os bombeiros se esgueiravam  abaixados, arrastando-se ou de cócoras. O objetivo principal era o de procurar sobreviventes. Objetivo secundário era o de transportar os mortos para fora.

Um jornalista, mais afoito, resolveu, na confusão, entrar nos escombros junto aos bombeiros. Ninguém o percebeu e ele, arrastando-se entre as lajes, conseguiu ingressar naquele espaço espremido e de escuridão apavorante.

Cheio de horror encontrava pedaços de corpos por toda parte. Um cheiro nauseabundo o fez vomitar. Mesmo assim, tentou transcrever no seu bloco de anotações tudo aquilo que sentia naquele cenário dantesco. Percebeu, então, que esquecera ou perdera a caneta.

- Ei! Você! Me joga essa cabeça aí!

O jornalista levou um susto. Procurou a origem da voz e conseguiu visualizar um bombeiro próximo.

- Falou comigo?

- Claro! Não tem mais ninguém aqui! Me joga essa cabeça que está aí do seu lado.

O jornalista avistou uma cabeça humana decepada ao seu lado. Angustiado, segurou cuidadosamente a cabeça pelos cabelos ensanguentados e, arrastando-se, levou-a até o bombeiro. O militar pegou-a satisfeito e a jogou num saco.

- Ótimo! Só falta um pé esquerdo para completar um corpo. Você viu um pé esquerdo por aí?

- Não! Você teria uma caneta pra me emprestar?

O bombeiro olhou-o desconfiado.

- Pra quê você quer uma caneta?

- Sou jornalista e preciso fazer algumas anotações.

O bombeiro deu um sorriso.

- Eu tenho uma caneta aqui no bolso, mas a empresto se você me der um pé esquerdo.

O jornalista irritou-se.

- Eu não tenho pé esquerdo nenhum! Me empresta essa droga de caneta!

O bombeiro não gostou da resposta.

- Ei cara! Mais respeito! E sem pé esquerdo não empresto coisa nenhuma!

O jornalista tentou tirar à força a caneta do bolso do bombeiro e os dois rolaram no chão sangrento numa luta brutal e descontrolada.

Bem mais tarde, quando saiu a relação dos mortos, o nome do jornalista estava incluído.  Foi o mais fácil de ser reconhecido, pois era o único corpo intacto.  Faltava-lhe somente o pé esquerdo.

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