sábado, 16 de julho de 2016

O Advogado

Ao acordar pela manhã, o advogado não sabia mais pensar e falar em português. Só transmitia palavras em latim!

A descoberta não foi assim, tão repentina. A primeira manifestação de tão estranha metamorfose ocorreu quando ao olhar no espelho do banheiro, proferiu para si mesmo: “nemo tenetur se detegere”. Assustado, procurou pensar a frase em português: difficile est longum subito deponere, foi a sua conclusão. 

A dificuldade maior foi a de conversar com a esposa e filhos. No café da manhã, a esposa o repreendeu por não ter feito a barba, fato verdadeiro cujo motivo foi a confusão mental da interferência latina. Ele respondeu: “barba non facit philosophum”. Ela deu um sorriso, talvez orgulhosa com os conhecimentos do marido, e comentou que a filha teve nota máxima na aula de balé. “arbor bona fructus bonos facit”, ele respondeu pomposamente.

No fórum, suas manifestações causaram espanto e admiração. Ao defender o seu cliente, o advogado proferiu longo e metódico discurso, mas todo em latim. O juiz ouviu perplexo,e fingiu entender tudo que ele dizia, fazendo acenos com a cabeça como estivesse compreendendo seus termos e concordando com a preleção. O advogado encerrou a defesa com a frase: “Veritatis simplex orati”. O juiz aguardou, porém, que o advogado se sentasse para ter certeza da conclusão, e acabou por inocentar o réu, diante das “elaboradas teses apresentadas pela defesa”.

Fama volat! A notícia espalhou-se nos corredores do fórum e já servia de conversas animadas na lanchonete do prédio. O advogado circulava de peito estufado e cabeça erguida, sendo saudado por todos com profundas reverências. A esta altura já o chamavam de mestre. Um jovem estagiário, mais afoito, perguntou-lhe o teor da tese de sua defesa. Ele respondeu: “allegatio sine probatione veluti campana sine pistillo est”. O jovem, que não entendeu a resposta, deu um sorriso: “mestre, o senhor honra a classe da advocacia”. E ele disse: “advocaci nascuntur, judices fiunt”.

No segundo dia, foi procurado por um advogado conhecido. “Amici, ad qui venisti?” ele perguntou. O amigo foi logo dizendo que uns clientes poderosos estavam interessados em contratá-lo com remunerações de boa soma. “Melius est abundare quam deficere”, ele respondeu.

Mas, no terceiro dia, ele acordou falando em grego clássico. λληνικ γλσσα, hē Hellēnik glō̃ssa. Saiu do banheiro a cantar as Ilíadas e a esposa chamou a ambulância do sanatório. Dizem que, atualmente, em sua prisão domiciliar e com tornozeleira na canela, ele fala em aramaico. Todas as suas petições de defesa são recusadas, com um “provido, mas não conhecido”.

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