sábado, 25 de junho de 2016

O deserdado

Deserdado da coragem, daquela vontade quase natural de viver, o jovem Brasil pôs-se a morrer lentamente nas mãos de seus tutores.

Já não lhe dizia respeito aquelas discussões ásperas entre os querelantes de sua custódia. Fechava os olhos, como em sonolência furtiva, e deixava-se levar em sonhos e imagens de  distantes paragens.

Brasil era presente, mas ausente, tão cansado estava da sofreguidão e dos propósitos mesquinhos dos candidatos a gerir suas riquezas. Nem tentava mais fingir interesse na pauta das discussões. Passava ao largo.

Lembrava-se de outros tempos, tão pequenino, a dispor de um imperador, criança como ele, com regentes na administração de seus bens. Já na época, a vida não era fácil, com as tentativas de lhe arrancarem pedaços, mutilarem seu corpo, cortarem seus pés no sul e deceparem sua cabeça ao norte. Mas, havia um imperador e seus regentes, com suas ambições próprias, é verdade, porém, ainda cuidavam do seu patrimônio.

E agora, um cansaço enorme, como se estivesse mantendo por longo tempo em seus braços o peso de milhões de habitantes. Sentia o desânimo de quem perde todas as batalhas. Dava-lhe vontade de arriar os braços e deixar cair todo aquele peso às profundezas do infortúnio.

Afinal, ninguém lhe prestava atenção. As conversas giravam em torno das vilanias dos tutores, os que proclamavam seus direitos de gestão. Por certo, a grandeza de seus bens ainda merecia desejos cobiçosos, muito ainda a saquear. Deste modo, na pauta dos debates, deixá-lo crescer forte e em condições de dar sustento à sua enorme família, eram questões subjetivas, de segundo plano.

O jovem Brasil sentia-se abandonado. Os seus verdadeiros interesses esquecidos por todos. À sua volta, pretensos tutores disputavam a sua posse, o domínio de seus bens, a forma de subjugá-lo. E aqueles que poderiam apoia-lo, a povoar as ruas, a dar o grito de alerta, estão, assim como ele, deserdados da coragem, e, já desanimados, desistiram e reprimiram os seus brados de revolta.

E o jovem Brasil pôs-se a morrer. 

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O sobrinho

A sala estava em silêncio fúnebre. Os três senhores, cada um com o seu copo de uísque nas mãos, olhavam, pela janela envidraçada, a cidade anoitecida lá embaixo, esfumaçada, estática, como um cartão postal falso e artificial.

Depois de um longo silêncio, um dos senhores resmungou: “nenhum de nós poderá assumir, esta é a verdade dos fatos”. Outro senhor depositou o copo na mesa e comentou: “Não adianta chorar o leite derramado, fizemos o que tínhamos que fazer naquela época”. E o terceiro, depois de dar um gole na sua bebida: “Era pegar ou largar, aceitar ou sair do mercado”.

Os três se afastaram da janela e sentaram-se nas poltronas. Um deles disse em voz calma e moderada: “Afinal, quem tocará a empresa?”. Os seus olhares não se cruzavam, não tinham coragem de se encarar. Olhavam para as suas próprias mãos cruzadas no colo, ou a alisar os dedos no copo da bebida.

“O seu filho também está queimado?”, perguntou um deles, dirigindo-se a quem fez a pergunta. Este balançou a cabeça em desalento: “Também está, assim como os seus, assim como o neto dele. Nem pensar nos membros das nossas famílias”. “E nem nos diretores, essa corja de delatores”, completou o avô.

O terceiro senhor olhou para o teto e suspirou. “Tenho um sobrinho, por parte da mulher. Engenheiro, ele é dono de uma pequena empresa de reformas de prédios”. O senhor que ainda estava com o copo nas mãos levantou as sobrancelhas: “E você nunca o convidou para trabalhar com a gente?”. O outro alargou os ombros, espreguiçando-se: “Não! Apesar de ser sobrinho é um cara meio antipático e turrão”. E o outro perguntou: “Mas, pelo menos, é um cara competente?”. O tio esboçou um sorriso: “Você já viu um pobretão ser competente? Vive lá, de suas obrinhas, dirigindo uma fiorino, trabalhando da manhã à noite, morando numa casinha apertada, filho em colégio público, um típico perdedor”.

O terceiro curvou-se na poltrona: “Mas tem ficha limpa, não tem?” O tio deu uma risada: “Claro que tem! Nunca teve qualquer oportunidade naquela vida medíocre que leva!”. “Oportunidade de sujar-se?”, perguntou o outro. O tio deu uma golada no uísque, foi até a mesa e completou outra dose da garrafa. “Quem não assume riscos não tem futuro. Foi assim com a gente!”. “E agora estamos ferrados!”, disse o terceiro.

“Converse com o seu sobrinho, talvez ele aceite”. O tio olhou o outro de forma zombeteira: “Se ele aceitar, o que duvido, os negócios passarão a ser preto no branco! Vamos quebrar!”. O outro se levantou para repetir a dose. “Talvez não, nós nunca tentamos, e, pelo menos, teremos uma ficha limpa na presidência”. E o terceiro, também já de pé: “E nós, por de trás, vamos acertando as coisas”.

“Isso não vai dar certo, conheço o meu sobrinho, é do tipo trabalhador estúpido, mas, se vocês querem, farei contato”.

E os três voltaram a olhar pela janela a cidade lá fora. Centenas de edifícios, todos perfilados, e em cada uma daquelas salas iluminadas haveria de ter um trabalhador estúpido trabalhando em busca do seu salário. 

sexta-feira, 17 de junho de 2016

O Alvará e o milagre de Fátima

Na semana que vem, nos dias 23 e 24 de junho, o Sindicato dos Agentes Vistores do Município de São Paulo – SAVIM, com apoio da ANAFISC, vai realizar o Seminário de Fiscalização de Atividades Urbanas da Cidade de São Paulo. É tão difícil ocorrer um evento específico sobre fiscalização de atividades urbanas, que enaltecemos a iniciativa como das mais importantes para o Fisco Municipal.

Eu já tive a oportunidade de trabalhar quatro anos na chefia da Fiscalização de Posturas de um Município de porte razoável, e sei das dificuldades. Vou contar um caso que aconteceu na época.

Recebemos a denúncia de que uma senhora havia transformado uma residência em escola infantil em um dos bairros mais nobres da cidade. A Fiscalização verificou no cadastro fazendário (o cadastro e a liberação do alvará eram controlados pela área tributária e não pela Fiscalização de Posturas, não me pergunte por quê), e apurou que a tal escola não tinha alvará.

A Fiscal de Posturas Satiê, uma japonesinha de um metro e meio de altura, mas gigante no trabalho, foi incumbida de ir ao local. Resolvi ir junto para saber como funcionava essa coisa de interditar estabelecimento.

Ao chegar na ‘escola’, uma grande placa informava na frente do prédio: “Escola Infantil Nossa Senhora de Fátima”. Entramos e Satiê perguntou pela responsável. Ela estava na sala de aula com as crianças. A Fiscal nem quis esperar: foi em direção à sala. E eu junto. Quando entramos, a senhora nos olhou surpresa e Satiê disse: “Bom dia, somos da Postula”. Satiê ainda trocava o R pelo L. A senhora, aflita, mandou a turma cantar o hino de Nossa Senhora de Fátima.

E a criançada cantou:

A treze de maio na cova da iria
No céu aparece a Virgem Maria. 
Ave, ave, ave Maria!
Ave, ave, ave Maria!

E no meio da cantoria, Satiê tentava falar à senhora: “É soble o alvalá!”. E em todas as tentativas da Fiscal, a senhora pedia às crianças: “Cantem mais alto!”. E todas entoavam entusiasmadas:

Ave, ave, ave Maria!
Ave, ave, ave Maria!

Uma tremenda confusão! Não conseguíamos falar com a senhora no meio de tanto barulho. Acabamos desistindo e fomos embora, sem interdição ou intimação.

No fusquinha da Prefeitura, voltando para a repartição, ouvi Satiê a cantarolar no banco traseiro:

Ave, ave, ave Malia!
Ave, ave, ave Malia!

Deu-se o milagre: a budista Satiê acabara de converter-se ao catolicismo! E eu fiquei sem saber como interditar um estabelecimento. Ave Maria!

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Versos do sufixo ente

Notícia de jornal: “Caiu neve em São José dos Ausentes”

Sou de São José dos Ausentes
(apesar de presente),
vivo na terra dos ausentes,
do frio ao calor inclemente,
de grandes rios, montanhas e vertentes,
uma nação continente!
Terra dos profetas videntes,
de bizarros presidentes,
de cândidos docentes,
de aulas vazias, mas eloquentes.

Quem diria! Já tivemos o inconfidente,
o castigo de Tiradentes.
Houve a saga dos tenentes,
a rebelião dos crentes,
o massacre dos insurgentes.

Afinal, sou de São José dos Ausentes,
da destruição do meio ambiente,
de investimentos decadentes,
de banqueiros imprudentes,
da esperteza reticente,
da camarilha subserviente,
do 'silêncio dos inocentes'.

Sou de São José dos Ausentes,
já velho, cansado e doente,
como muitos desse contingente.
Assiste-se a tudo pacientemente,
essa realidade indecente.
A tristeza com os jovens e carentes
sem perspectivas pela frente.
A não ser essa neve indolente,
a cair suavemente,
nessa terra dos ausentes. 

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A Cegueira Deliberada

- Amô! Você está atrasada! Ainda não se vestiu?

- Sabe que é? Não sei a roupa que devo usar no depoimento.

- Põe qualquer uma! Juiz não gosta de esperar!

- Qualquer uma? E eu sou mulher de sair com qualquer uma roupa?

- Tá bom! Mas decide logo! E não esqueça que de lá podemos seguir direto para a prisão!

- É por isso que estou em dúvida... Qual é a moda que se usa na prisão?

- Não sei, amô! Veste uma simplizinha...

- Estou pensando nesse Dolce & Gabbana que comprei em Paris...

- Não tem coisa... Mais leve?

- Ora, posso usar esse Oscar de la Renta que comprei em Roma.

- Desculpe, amô, mas não pode ser algo, vamos dizer, mais leve ainda?

- Só se eu vestir esse Chanel que comprei em Nova York. Mais leve do que isso, impossível! Lembra que comprei esse modelo quando a gente estava dura! Custou só uns 60 mil reais, lembra?

- Desculpe, amô, por obrigar você a passar por isso, mas já estavam de olho na gente...

- Eu sei, amô, não sou tão tola assim, mas a vergonha que passei ao comprar um vestido barato como esse! A vendedora pensou que eu era pobre! Uma favelada carioca!

- Eu sei, eu sei, mas anda logo, amô! Depois eu lhe compenso...

- Não sei como! Vai tirar desse salário de pobre que você ganha?

- Não!! Ainda têm alguns negócios por aí!

- Não me conte! Não quero saber de onde vem o dinheiro, onde você consegue. Afinal, eu só sei gastar!

- Está bem! Não conto, mas anda logo, por favor!

- Amô! Agora estou com dúvida do sapato... Você acha que esse Louis Vuitton combina com o vestido?

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Moralista

Bombósio Espinafro, indicado para investigar políticos pela prática de delitos, deu início às suas árduas tarefas nas câmaras municipais da vasta região de sua competência, a perseguir os passos da vereança lá aquartelada. Ao puxar um fio de suspeita deparava-se com outro e mais outro, até formar um nó embolado de difícil desatamento. Chegou à conclusão de que todos os edis estavam engajados nos crimes de peculato e, assim, a pedir a prisão de todos eles.

Câmara Municipal vazia voltou-se aos Prefeitos, a perscrutar suas vivências públicas e a concluir pela culpabilidade geral, de crimes praticados a esmo. Soltou relatório pedindo a prisão de todos.

Municípios acéfalos, partiu em direção ao Estado e acostou provas e presunções, dando-lhe embasamento à denúncia contra todos os deputados, suplentes e supérfluos, enfiando todos na cadeia. Não fez vista grossa aos governadores, ao apurar falhas licitatórias e outros despautérios, prendendo-os todos.

Mesmo engabelado no Congresso Nacional, manteve-se entono na sua plenitude de altivez e através de escutas sigilosas apurou a sem-vergonhice desenfreada, requerendo o acautelamento de todos os congressistas.

Foi, então, ao aproximar-se da casa mais alta, que constatou a terrível verdade de que se fossem presos todos os maledicentes nenhum sobraria. E, por certo, sendo a corrupção a regra maior, sem ressalvas e exceções, seria ele o verdadeiro criminoso e não os outros, os acoitados. Pois impossível germinar a honradez em meio à imoralidade consolidada e sedimentada em tantos anos de falcatruas.

Sim! Era ele, Bombósio Espinafro, o verdadeiro infrator, aquele que ruma em direção oposta, a tergiversar às normas regulamentares do ilícito, aquele que contraria as regras da conduta desmazelada e imposta a todos os homens de fé pública e de imoralidade ilibada! 

E foi assim que Bombósio Espinafro requereu à Justiça a sua prisão incontinenti, de preferência confinada em solitária de vigilância máxima, para que evite todas as formas de contágio do mal da honestidade que o aflige.